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Sobre a formação do analista, como funciona?

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    AMP
  • 28 de out.
  • 10 min de leitura
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Claudia A Conti

 

Hoje, ao final de mais um semestre de árduo trabalho, afinal não se brinca de ser analista, não se brinca de estudar psicanálise, já que em seu bojo, a mesma carrega as dimensões das várias subjetividades postas em questão nos encontros de formação e discussão. Exatamente por isso, estaremos encerrando o semestre com uma discussão acerca da formação, do papel do analista, da sua autorização e dos riscos próprios à esta jornada.

Há sempre uma grande preocupação em como defender a psicanálise, desde que Freud assim a conceituou, pois, a mesma está intrinsecamente ligada aos campos econômico e político estabelecidos na sociedade, e que busca garantir seu espaço, prosseguindo em seu crescimento e consolidação. Sua ética é específica, genuína, possui uma relação particular com as ciências, e sua eficácia não se reduz à sua própria terapêutica. Desde Freud, defender a psicanálise faz parte de sua história, ele sabia das hostilidades contra a psicanálise, e que mesmo veladas foram se repetindo ao longo da história; contudo, a psicanálise privilegia uma relação específica com a verdade, transitória, mas profundamente identificada às fissuras que nos remetem ao mal-estar na cultura. A transferência nela, é mola, é mestra para acessar o saber inconsciente, e é exatamente por ela que vemos impossibilitada a regulamentação da psicanálise, não há pedagogia da transferência, é de Outro saber que falamos, é Outra verdade que buscamos: “...a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber, ela põe em questão a própria função do saber...” JL 1980 - tanto para o sujeito quanto para a sociedade.

Em 1926, Freud publica A questão da análise leiga, consequência de denúncias contra Theodor Reik, acusado por seus pacientes de curandeirismo. O caso teve desfecho favorável à Reik, mas acende o debate sobre a quem de direito o exercício da psicanálise. É um texto político, que não fica restrito aos praticantes da psicanálise, é apresentado em forma de diálogo e transmite o essencial da doutrina, fazendo o interlocutor perceber que a mesma não é aprendida nos livros ou nas universidades. A posição de Freud é clara, ele defende que a prática seja realizada somente por aqueles que tenham passado pela experiência do inconsciente, analistas analisados, sem diplomas ou certificados. Ao analista, não cabe operar a transmissão da psicanálise tornando-a prática obsessiva e regulamentada. De modo, que a formação do analista é leiga, não se inscreve no campo técnico, clínico ou médico, nem no das psicoterapias, mas sim, é uma formação sustentada por laços transferenciais; o verdadeiro analista é aquele que se abstém da mestria, não dá aulas, não tem alunos, mas pares, se abstém ainda das boas intenções, dos conselhos e das prescrições; toda orientação trata-se de propiciar o enredo da associação livre e da posição do sujeito frente ao seu desejo. A aposta ética de uma análise visa operar o desejo como medida para as ações do sujeito, e não os ideais culturais e ideológicos. A presença do desejo do analista, orienta a direção do tratamento: de onde Freud aponta para “...não ceder do seu desejo”. A psicanálise, é em si leiga, mas não ignora a existência de um saber que está em jogo, a verdade inconsciente e suas leis.

A palavra ‘laico’, leigo, vem de Laos, povo: cada um à sua maneira, contrariando o Klerikos: saber prévio daquele que sabe ler e escrever. Para Freud, aquele que foi analisado, conquistou um saber sobre seu inconsciente, não é mais um leigo sobre a psicanálise; não há conhecimento prévio e cumulativo, por isso a psicanálise subverte o Klerikos, quando sustenta que o analista se cria a partir de sua própria experiência, da experiência da consciência, diria Hegel, eu completaria da experiência da consciência do inconsciente. Um analista nasce de seu desejo de fundar, a cada instante, a possibilidade de uma nova formação do inconsciente para aquele que ele se dirige. Uma verdadeira psicanálise, produz o abandono da presunção de se apropriar da técnica sem passar pela experiência; um analista será sempre marcado pela sua experiência transferencial com o inconsciente, sempre se interrogará como sintoma em sua própria experiência, não deixará de fazer a marca de sua prática. A metapsicologia freudiana será alinhavada nos desdobramentos transferenciais, contudo, há um enigma a ser sustentado na formação analítica: o fato de um sujeito ter passado por uma análise, não o exclui das instituições analíticas, pelo contrário, esta deverá ser buscada para legitimar sua prática, seu manejo e a condução de suas análises.

Christian Dunker, em seu artigo Riscos Próprios e Impróprios da Formação Analítica, nos coloca uma questão: O que garante a psicanálise?

“Ele nos remete com essa pergunta a três níveis distintos de resposta, a saber:

·         Primeiro se pode entender de que se trata da garantia que um analisante tem que diante da experiência que se lhe anuncia, que esta experiência será de fato uma psicanálise. Nesse nível somos levados a uma tautologia: a psicanálise é o tratamento conduzido por um psicanalista e um psicanalista é aquele que conduz curas analíticas. É neste nível que se coloca a primeira objeção paranoica: mas como o paciente pode saber que tem diante de si um psicanalista e não um embusteiro? Como me disse alguém uma vez: “Fui a um psicanalista e ele me disse: ‘deite-se que eu gostaria de examinar suas zonas erógenas’ ”. Digo que o argumento é paranoico, mas poderia também me referir à segregação e ao complexo de impostura que ele acaba por disseminar. Ou seja, podemos dizer onde não há psicanalista, mas dificilmente podemos dizer onde ele está. O desagradável da situação é que o antídoto teórico para esta dificuldade é também um tanto quanto tautológico: o analista não se autoriza senão de si mesmo. Confesso que esta máxima sempre me despertou certo constrangimento. Afinal como uma experiência de dissolução do eu, de reconhecimento radical do caráter alienante e de desconhecimento intrínseco do “si mesmo”, poderia se transmitir a partir do autorizar-se por si mesmo. Uma análise deveria ensinar alguém a, sobretudo, desconfiar de “si mesmo” e de preferência não extrair a autoridade necessária para seus atos da força egóica de sua identidade. Examinando mais de perto a noção de si mesmo, na tradição ocidental, vemos que ela decorre de três acepções distintas que acabam se combinando: o ipso, o idem e o proper.

Ipso, de onde vem a ideia de ipseidade, refere-se ao caráter único de alguém.

Idem, de onde vem a ideia de identidade refere-se à continuidade ou mesmidade do si mesmo ao longo do tempo.

Proper indica, na esfera do si mesmo, a capacidade de ser próprio, de apropriar-se de seus atos, palavras e desejos. Só consigo reconhecer alguma plausibilidade na tese do autorizar-se por si mesmo, se o entendemos como expressão do apropriar-se, do tornar própria a atividade à qual se refere, no caso analisar. Poderia argumentar adicionalmente que isso é compatível com a tese do analista definido por seu estilo próprio. Ocorre que a apropriação, que é um dos sinônimos possíveis para desalienação, implica uma experiência que ultrapassa o risco da situação analítica.

 

·         Aqui entramos no segundo nível de consideração do que garante a psicanálise. Neste nível trata-se do que o analista deve tornar próprio para se tornar analista. Há várias coisas, todas elas se reúnem na noção de formação. Tenho estudado este conceito, que é de fundamental importância na teoria da cultura desde o romantismo alemão, a partir da maneira peculiar como Freud o trouxe para a psicanálise. Um aspecto central da ideia de formação, em sua acepção mais forte, é de que se trata de um processo pelo qual o sujeito torna própria a alienação que de início se lhe impôs. A formação é o ponto em que alguém, torna sua a herança recebida. Isso é uma indicação que me parece preciosa para pensar a formação do analista, trata-se de torná-lo sujeito responsável pela sua própria formação. As primeiras palavras do texto da Proposição deixam claro esta ideia: “Trata-se de fundamentar, num estatuto duradouro o bastante para ser submetido à experiência, as garantias mediante as quais nossa Escola poderá autorizar um psicanalista por sua formação – e, em decorrência disso, responder por ela. “ (Lacan, Proposição V1, 1967:575) Uma Escola, portanto, autoriza o analista por sua formação, entendo isso no duplo sentido de permitir que ele se aproprie, que ele seja autor, de sua formação e que isso lhe confere uma certa autoridade. Nada, portanto, menos formativo do que a atitude dócil e resignada diante do saber, que deve ser compreendido, assimilado e reproduzido, segundo um certo sistema de hierarquias e distribuição do capital simbólico inerente ao saber. Formação implica uma certa confrontação da qual se extrai um princípio genérico: o risco. Quando se escolhe um analista, quando se decide por um supervisor, quando nos envolvemos com uma instituição analítica e não outra, quando vamos a um seminário ou mesmo quando escolhemos ler um livro em vez de outro, em cada um destes pequenos ou grandes gestos há um risco. O importante é que este risco seja um risco próprio, que seja reconhecido como tal e julgado segundo os termos que são os da própria formação. Esse me parece ser o sentido da distinção entre gradus e hierarquia. A hierarquia baseia-se na lógica do risco social, o gradus na lógica do risco formativo.

 

·         Passamos aqui ao terceiro nível de consideração sobre o que garante a psicanálise. É o nível de sua relação com o campo social. Entendo que não se trata de fugir a este plano e argumentar toscamente que a psicanálise se faz e se reconhece por si mesma e entre seus próprios pares. Isso seria trair duramente a ideia de formação. Seria reduzir a formação à um processo apenas ético e não também político. O risco ético não é o espelho do risco político, entre eles há uma Banda de Moebius da transferência. Entre eles há a psicanálise em extensão e a psicanálise e intensão. A palavra autorizar contém este duplo vínculo: autor e autoridade. Neste caso o risco não se transfere para a Escola que escolhemos participar: Quando falo em risco social refiro-me a uma expressão corrente da ideologia de nossa época, ou seja, a tendência a regular as relações sociais e as orientações político normativas segundo o princípio da redução de risco. Quanto menos risco melhor. É neste quadro, bem descrito por autores como Beck e Guiddens, que se pode entender o problema da regulamentação da psicanálise. Ou seja, seria preciso defender a população contra o risco representado por uma prática potencialmente perigosa, danosa ou não legítima. O argumento da segurança dos usuários combina-se assim com as políticas públicas de distribuição de saúde e tratamento. Importante notar que a percepção da prevenção ou evitação do risco torna-se um fator determinante da política, é uma extensão do que Foucault chamou de bio poder. Insisto, trata-se da percepção de que o Estado está ali onde o esperamos, ou seja, na função de garantia contra o risco.”

Ainda, segundo Dunker, esta observação é crucial para entender o debate sobre a regulamentação em nossos dias e em nosso país. O caso contra Theodor Reik, que motivou Freud a escrever A Questão da análise leiga, pertence a outro universo. É uma contenda entre corporações, a médica e a não médica. O caso da regulamentação da psicanálise na Itália da década de 60, segue o mesmo princípio, neste caso resolvido por meio de um acordo. A tentativa de estabelecer um Instituto de Psicanálise, na USP dos anos 70, feita por Durval Marcondes, também seguiu esta lógica, neste caso entre a corporação universitária e a psicanalítica. Não é que as lutas corporativas estejam extintas, elas se avivam mesmo no quadro atual, ocorre que a partida é jogada segundo outro contexto. Trata-se do Estado assumindo diretamente a incitação regulatória do risco.

No cenário do Reino Unido, (ele não difere substancialmente da situação na França), foi o Estado Britânico que interpelou as associações de psicoterapia acerca das condições sobre as quais se poderia legitimar sua prática e assim diminuir risco e maximizar o investimento público em saúde mental. Á partir disso formou-se a UKCP, uma meta-associação congregando diferentes formas de psicoterapia: junguianos, adlerianos, reichianos e lacanianos. Só BPA ficou de fora. Ocorre que a IPA britânica tem um braço psicoterapêutico, que reúne aqueles que querem praticar a psicanálise, mas não tem os recursos financeiros ou as condições para efetuar uma formação apropriada. Essa classe média de “analistas” (entre aspas, não porque não sejam, mas porque se apresentam assim) luta fervorosamente contra a regulamentação da psicanálise, defendendo assim a causa de seus próprios opressores. Temos uma associação de psicoterapias no Brasil, a ABP, que tem um perfil muito semelhante à UKCP. Roudinesco argumentou como esta nova estratégia do Estado, que sai de sua posição passiva, de árbitro ou mediador das contendas corporativas e profissionais e passa para a posição de agente incitador da segurança das populações, difere em função dos limites que cada cultura tolera para a ação pública sobre a esfera privada.

Desta maneira, que o problema da regulamentação não é primariamente relativo aos psicanalistas, mas às associações de psicanálise. A segregação é indireta, quem estiver fora de uma associação ou que não for por ela legitimado, está fora do sistema de distribuição de recursos sem saúde mental, está excluído dos concursos para trabalhar em instituições e será lentamente segregado à condição de um não-formado.

Está aqui a raiz para um tipo de risco que é impróprio. Impróprio no sentido de que ele transfere para uma instância Outra a administração das tomadas de risco inerentes a processo formativo. No fundo o argumento final seria o de que o Estado garante a psicanálise, e os riscos formativos que ela implica são riscos minimizáveis pelas garantias que ela oferece.

“A formação do analista e a transmissão da psicanálise tem a estrutura de um chiste”.

O que garante que uma piada será de fato uma piada, ou seja, que ela produza efeitos como o riso ou o humor? Freud tinha algumas ideias a respeito. É necessário que aquele que conta e aquele que escuta pertençam “a mesma paróquia” (Sem.V – J.L.), mas o fato de que pertençam à mesma paróquia é condição necessária, porém não suficiente, aliás, quando estamos demais na mesma paróquia as piadas tendem a ser conhecidas, são velhas e perdem seu gosto. Logo, as boas piadas, de alguma forma vem de fora. Contar uma piada é sempre um risco, podemos nos dar mal, pior do que passar desapercebido é tentar agradar e não conseguir. Há um risco, que tem que ver diretamente com a forma como quem conta pretende extrair um “fragmento de gozo” que só retorna ao sujeito na medida em que ele se desfaz e “passa a diante” uma primeira experiência, na qual ele mesmo foi ouvinte. É quando passamos a piada adiante que realmente nos apropriamos dela. Mas nada menos propício ao efeito de chiste do que alguém nos incitando ou obrigando a contar piadas. 

Como muito bem esclarecido por Dunker toda a contenda inerente à formação psicanalítica, na própria história do movimento, resta-nos diante do colocado, estarmos sempre esclarecidos daquilo que nos concerne quanto à nossa formação, mas também de como a passaremos adiante. Não há um ponto a ser capturado sobre a formação analítica, mas vários, e a história da psicanálise não pode ser recalcada, pois desta forma, acabaríamos andando em círculos; o que obviamente nos colocaria na repetição sintomática, não oportunizando a continuidade da psicanálise, não oportunizando as experiências que nos conduziriam às elaborações necessárias para que nossa verdade fosse colocada em questão.

 

 

Bibliografia

 

ALBERTI, Sonia. AMENDOEIRA, Wilson. LANNES, Edson. LOPES, Anchyses. ROCHA, Eduardo. (Orgs.) – OFÍCIO DO PSICANALISTA - Formação vs. Regulamentação. Casa do Psicólogo, São Paulo, 2009.

DUNKER, C.I.L – Riscos Próprios e Riscos Impróprios da Formação Psicanalítica. Intervenção no Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2007.

LACAN, Jacques. O Seminário, as formações inconscientes. Livro 5. Zahar, RJ, 1999.

QUINET, Antonio. A estranheza da psicanálise, a escola de Lacan e seus analistas. Zahar, RJ, 2009.

 
 
 

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